segunda-feira, janeiro 12, 2004

Comunidade, a urbana

Esta tarde nasce a primeira Comunidade Urbana, a do Vale do Sousa.
O primeiro ministro é a parteira de serviço e com sorriso mole, o do costume, receberá nos braços o nado.
Bem vinda seja aquela que sucede, bem vinda seja aquela que substitui o que nunca foi, bem vinda seja aquela cujo destino é o de sempre.
Nascida, para substituir a Associação de Municípios do Vale do Sousa, a novíssima Comunidade Urbana prepara-se para tornar uno um espaço sem unidade.
Nasce assim a Comunidade, uma geografia acidental e acidentada, quem bem podia ser "isto" que Luiz Pacheco descreve no seu livro "Comunidade" ou outra coisa qualquer.

"É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados : uma pernita de criança, um braço nu sòzinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam."

Luiz Pacheco, "Comunidade", Contraponto, 1964