sexta-feira, agosto 08, 2003

O Popular

"Um número recente da revista Veja trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) "incomodações" na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prémio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.

É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no tiroteio. Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra.

Sempre pensei que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira. Nas nossas incomodações polí­ticas, no tempo em que ainda havia polí­tica no Brasil, o Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia protegidos por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo do braço, examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida. Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o Popular apareceria assistindo ao Descobrimento do Brasil, à  Primeira Missa, ao Grito da Independência, à  Proclamação da República... Sempre com seu embrulho embaixo do braço. E de camisa esporte clara para fora das calças (o Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio, o Popular tropical é muito mais Popular).

NÃo se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica assistindo à  sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos no bolso e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma frase de comí­cio ou um drama na rua, e aí­ o Popular é o que fica olhando o Transeunte.

O Popular não tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir "a opinião de um popular" na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a câmara.

O Popular não merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é "socorrido por populares", outro, menos feliz, que é "linchado por populares"... Engano. Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade pelo detalhe supérfluo, um fascí­nio irresistí­vel pelo insignificante. Nas revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.

O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a margem dos acontecimentos. E -- este é o seu maior mistério, a chave da sua existência -- ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva naquele embrulho. E tem mais. O dia que pegarem um Popular para desvendarem o mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso, assistindo tudo. "

Luis Fernando Verissimo in "O Gigolô das palavras"

Eu vi, hoje, este popular de que fala Luis Fernando Verissimo. Não era inglês, não tinha um embrulho na mão e não ficou calado atrás dos protagonistas a assistir a tudo.
O popular que eu vi perorava por Penafiel, num desses incontáveis incêndios que devoram as matas.
Enquanto conversava com um proprietário de uma casa em risco, o popular chegou.
Numa primeira ficou à distância, observando a situação a partir do seu Renault 19. Com ele, a suar em bica, estava a famí­lia completa, que se acotovelava no banco de trás da viatura.
A força do sol castigava quem, no meio das cinzas, tentava fazer prognósticos e encontrar soluções que poupassem as casas. O popular não desarmava, ensopado em suor não saí­a do carro.
Avançamos para outro local. Mentira. Não avançamos. Arrastamo-nos atrás do popular que vendo a agitação se colocou a caminho do próximo cenário. Numa velocidade controlada e que não ultrapassava os 30 km, o popular apreciava a paisagem negra de cinza e fumo e prestava esclarecimentos à tribo ululante que se engalfinhava na rectaguarda do veí­culo.
Foi penosa a viagem de 700 metros. Demorou uns quantos, largos, minutos. Chegados ao novo poiso, o popular desceu da viatura. Preparado para os rigores do estio, o popular envergava umas calças de fato-de-treino arregaçadas até aos joelhos. No corpinho uma t-shirt coleante enrolada até meio do tronco. No pé trazia a bela sandalinha de dedo. No canto da boca bailava um palito. Não fosse estar acompanhado por uma espécie lontrina ( não londrina, porque o popular não era inglês) que tratava por um carinhoso "môre", e parecia um personagem extraí­do da gay parade de Berlim.
Já mais à vontade garantia a plenos pulmões, este popular, que andava naquele serviço de mirone desde a manhã.
É assim o nosso popular, pela-se por uma tragédia, rejubila com uma desgraça, veste-se a preceito, parte para o local, custe o que custar. E insiste. Insiste. E insiste, Até ao dia em que será coroado com uma entrevista televisiva, para falar do que não sabe e dizer o que não deve. Os políticos estão na mira, só falta a oportunidade.