quarta-feira, julho 30, 2003

África

A cooperação entre amigos é como as cerejas, quando se começa não se pára. O José Vinha desafiou-me a comentar duas notícias que saíram quase em simultâneo em agências noticiosas internacionais. O seu amor a Angola e os laços que me ligam a Moçambique estão na base deste desafio. Não viro costas à conversa, mando vir duas cervejas, peço ao Zé que se sente e mãos à obra.
Mas primeiro as notícias:

"Apesar do aumento na produção de alimentos em Angola, mais de um milhão de pessoas necessitam de ajuda alimentar. Esta é uma das conclusões do levantamento feito por uma missão conjunta do Programa Alimentar Mundial (PAM) e da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO). Peritos em produção agrícola e distribuição de alimentos advertiram que as carências alimentares da população angolana continuam a ser altas.
Apesar dos resultados favoráveis na agricultura, Angola terá ainda que importar 500 mil toneladas de cereais para poder aliviar as suas carências alimentares. De acordo com o estudo, a par da diminuição do número de
pessoas deslocadas no país, ocorreu um aumento no número de refugiados que regressam a Angola e de soldados desmobilizados que voltam aos seus locais de origem, após a assinatura do acordo de paz no ano passado”

" Luanda - Foi descoberto um novo poço de petróleo no «offshore» de Angola, anunciaram esta terça-feira a Sociedade Nacional de Combustíveis (Sonangol) e a sua associada BP. Denominado «Saturno», o poço está localizado nas águas ultraprofundas do bloco 31. De acordo um comunicado distribuído à imprensa,
citado pela Angop, o poço agora descoberto tem uma capacidade de produção diária de cinco mil barris e está localizado a nordeste do poço Plutão.
A ultima descoberta no bloco 31 ocorreu no ano passado. Este bloco foi adjudicado pela Sonangol à BP em 1999. Na qualidade de operadora, possui 26,67% de participação, tendo como parceiros a Esso Exploration, que detém 25%, a Statoil Angola, com 10%, a EPA com 50% e a Sonangol com 20%."


Antes de qualquer teoria se desenhar no horizonte aqui vai uma citação do Mia Couto, que é extraída de uma entrevista hoje publicada no Público...

"Nem os negros são especialmente bons nem especialmente maus. África não é o lugar privilegiado da poesia. O continente africano não é especialmente corrupto ou particularmente violento. A corrupção e a violência são fenómenos humanos e ganham expressão diversa de acordo com diferentes cenários históricos."

Assim sendo o que posso dizer é que África, e Angola em particular, nos habituou a ser esse território de profundos contrastes, onde a riqueza absoluta vive paredes meias com a pobreza nua e crua, e onde a luxúria convive com a aridez dos desertos.
Quem quiser saber um pouco mais do que é Angola fica o desafio para que passem os olhos por um livro belíssimo de Ruy Duarte Carvalho, "Como se o mundo não tivesse leste". Essa é a Angola dos pastores nómadas, que vivem em função das chuvas e das secas, e que sobretudo vivem martirizados desde o dia em que os arrancaram dos seus territórios, em que lhes vedam os mortos e lhes dessacralizaram a terra.
São eles, e mais ninguém, quem paga essa factura. Esse total desrespeito pela ordem natural das coisas que desde sempre regeu com sábia autoridade o mais fértil dos continentes.
O olhar do antropólogo identifica o cerne do ser angolano, esse ser tímido e temente às suas raízes.
Para perceber o que é esta disparidade lê o primeiro conto deste livro que te recomendo, um retrato de uma família de pastores a contas com os rigores de um seca, depois de afastados das suas terras pelos grandes latifundiários. De um lado da vedação tudo floresce, do outro a míngua reduz a pó a existência.

Quanto ao petróleo só te posso dizer que, um país morto de fome em que os políticos e magnatas se preocupam apenas com poços chamados Saturno e Plutão, é definitivamente um país que não vive com os pés assentes na Terra.

Zé suspira e diz como o Mia: " Sou de um país que só se torna visível por via do negativo, da desgraça, da guerra.”