segunda-feira, outubro 17, 2005

eis porque gosto tanto da Clara

"Eu acho que a verdadeira razão pela qual os homens andam todos como toda a gente se queixa que andam, assim trombudos, deprimidos, alienados, silenciosos, essas coisas, tu sabesessas coisas que eu te digo tantas vezes, eu acho que os homens andam assim porque estão a ser obrigados a desempenhar um papel que não tem absolutamente nada a ver com eles. Isto do homem doméstico é uma modernice sem pés nem cabeça. No meio do entusiasmo das revoluções, ninguém perguntou aos homens se eles queriam viver desta maneira. E eu acho, mas é que acho mesmo, que a vida em família é completamente contrária aos instintos do homem. A sério."

Clara Pinto Correia, "No meio do nosso caminho", Oficina do Livro, 2005

terça-feira, outubro 11, 2005

Londres e os Paraísos Artificiais

Por aqui navega-se entre Londres e S. Paulo, por entre contos ou breves descrições. Há um negro carinho nos passeios de Virgínia Wolf pela Londres dos anos 20/30. As docas e os navios que ali estão presos à agua, "por uma pata", as fábricas sujas, as terras lamacentas. Como Virgínia, também estes retratos aparecem ora envolvidos em ternura e felicidade, como de repente se deixam abater por uma enorme tristeza e melancolia.
Com Paulo Henriques Britto as viagens são feitas pelo quotidiano. pelas rachadelas na parede, por uma maçã que apodrece na mesinha de cabeceira ou por um vulto que chama por nós no meio da rua.
Para o vencedor do Prémio Portugal Telecom de literatura brasileira, em 2004, a paisagens dilui-se na emergência dos objectos e gestos quotidianos. Uma janela no prédio em frente, uma cozinha ou a cama onde nos deitamos, enfermos, são espaços de evasão tão eficazes quanto uma viagem ao mais sereno desertou ou à mais movimentada metrópole.
Nestes dois casos as viagens, pela Londres do-pós guerra ou de um quarto vazio, são sempre viagens interiores, sem paraísos ou artificialismos.


"Mais adiante, uma pousada com varandas em arcoapresenta ainda o estranho ar de dissipação próprio dos locais dedicados ao prazer. Este foi, em meados do século XIX, um lugar referenciado pelos foliões, e chegou a ser mencionado no contexto de alguns dos mais famosos casos de divórcio da época. Agora que o prazer se foi, ficou só o trabalho; e a pousada, ao abandono, ergue-se hoje como uma bela, engalanada com os seus mais belos atavios nocturnos, contemplando as planuras de lama, as fábricas de cera e aqueles amontoados de terra malcheirosa (sobre os quais os camiões despejam continuamente novos montes) que vieram substituir por completo os campos onde, há cem anos atrás, os amanttes vagueavam e colhiam violetas."

Virginia Wolf, "Londres", Relógio D'Água, 2005

"Olho em volta. A cozinha está escura. Acendo a luz. De repente os objetos parece que vêm à tona, é essa idéia, antes estavam afundados na escuridão, agora vêm à tona. Todos exatamente nos seus lugares, nenhum aproveitou a minha ausência para sumir, virar-se do avesso, se transformar em salamandra ou estátua de sal. Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiarnum escorredor ou num fogão de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve ser mais ou menos isso."

Paulo Henriques Britto, "Paraísos Artificiais", Companhia das Letras, 2004

"As intermitências da morte"

E se a morte fosse de férias. Se a senhora de negro vestida e de alfaia agrícola às costas estivesse cansada.
Este é o mote para o novo romance de José Sramago. As funerárias vão à falência por falta de clientes. Os asilos estão sobrelotados. O povo habitua-se à vida eterna.
A morte é a protagonista de "As intermitências da morte". No Brasil sai ainda este mês, em Portugal ninguém faz ideia.
Segue aqui a sinopse, vinda do outro lado do Atlântico:

"Não há nada no mundo mais nu que um esqueleto", escreve José Saramago diante da representação tradicional da morte. Só mesmo um grande romancista para desnudar ainda mais a terrível figura. Apesar da fatalidade, a morte também tem seus caprichos. Cansada de ser detestada pela humanidade, a ossuda resolve suspender suas atividades. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema. Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder "passar desta para melhor". Os empresários do serviço funerário se vêem "brutalmente desprovidos da sua matéria-prima". Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não pára de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque "sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja". Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna? Ao fim e ao cabo, a própria morte é o personagem principal desta "ainda que certa, inverídica história sobre as intermitências da morte". É o que basta para o autor, misturando o bom humor e a amargura, tratar da vida e da condição humana.

quinta-feira, outubro 06, 2005

os debates

"O político parece-se muito com os varões de certas tribos do Pacífico austral que vozeiam ruidosamente dores de parto fora da cabana enquanto, lá dentro, as suas mulheres estão a parir; um simula as dores, mas quem dá à luz é a outra. As discussões políticas são vozearias, frequentemente ineficazes, enquanto não chega o último momento possível para a realização das mudanças inevitáveis. Ensinaram-nos que é isso que faz da política uma coisa frustrante, irresponsável e fraudulenta, mas devíamos habituar-nos a considerar que é isso o que a constitui."

Daniel Innerarity, "A Transformação da Política"

Domingo dispo a bata de parteira.

eremitério

"mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior dessa ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração"

Al Berto, Horto de Incêdio, Assírio & Alvim