sexta-feira, agosto 05, 2005

encaminhando-me para o mar

"Tinha uma teoria própria e muito especial sobre os corais. Na sua opinião, os corais eram, como já foi dito, animais marinhos que, de certo modo, apenas por modéstia inteligente, fingiam ser árvores e plantas, para não serem atacados ou devorados por tubarões. Os corais ansiavam ser colhidos pelos mergulhadores e trazidos à superfície da Terra, cortados, facetados e enfiados, para poderem finalmente cumprir o seu verdadeiro objectivo de vida: isto é, tornarem-se o adorno das belas camponesas. Só aqui, nos pescoços brancos e firmes das mulheres, em contacto íntimo com as artérias vivas, as irmãs dos corações femininos, se sentiam renascidos, adquiriam o brilho e a beleza e exerciam a magia que lhes era inata para seduzir os homens e despertar neles o prazer do amor. Sem dúvida que o velho Deus Jeová criara ele próprio tudo, a Terra e os seus animais, os mares e todas as suas criaturas. No entanto, Deus confiara, Ele próprio, ao Leviatã, que estava na origem de toda a água, em especial dos corais, durante algum tempo, mais precisamente até à chegada do Messias, a administração dos animais e das plantas dos oceanos.
Depois de tudo o que foi dito, poder-se-ia pensar que o comerciante Nissen Piczenik era conhecido como um homem estranho."

Joseph Roth, "Leviatã", Assírio & Alvim, 2001

quinta-feira, agosto 04, 2005

num quarto escuro, a Emília Silvestre

"Claro, fui ridícula, mas se levei o telefone para a cama é porque ele, apesar de tudo, nos une ainda. Liga esta casa à tua casa e não te esqueças que me tinhas prometido falar. Imagina que mergulhei numa confusão de sonhos. A tua chamada transformava a campainha do telefone num som mortal e eu caía; depois, vi um pescoço branco que alguém estrangulava; depois ainda, achei-me no fundo dum mar que se parecia com o apartamento de Auteuil, ligada a ti por um tubo de escafandro e a suplicar-te que o não cortasses. Enfim, sonhos estúpidos quando se contam; mas o pior é que durante o sono eram demasiado vivos. Terrível, meu amor....................................................................Porque tu me falas. Há cinco anos que vivo de ti, és o único ar que posso respirar, que levo o tempo à tua espera, a julgar-te morto, a reviver quando entras e te vejo, a morrer com medo de partires. Neste momento, respiro porque tu me falas. O meu sonho, afinal, não é assim tão falso; se desligares agora, morrerei afogada naquele mar que parecia o teu apartamento.....................................................................................................
.........................................................................................................................
...............De acordo, meu amor; dormi. Dormi porque era a primeira vez. O médico bem disse: é uma intoxicação. Mal ele sabia... A primeira noite, dorme-se. O sofrimento distrai, é uma novidade, e suportamo-lo. O que não se suporta é a segunda noite, a de ontem, e a terceira, a de hoje, a que vai começar dentro de alguns minutos, e amanhã e depois de amanhã, dias sobre dias, a fazer o quê, meu Deus?"

Jean Cocteau, "A voz humana", Assírio & Alvim, 1999

olhar os factos

"O estudo que granjeou fama a Levitt é dedicado à criminalidade. O economista investigou as razões do decréscimo de crimes violentos na década de 90, nos Estados Unidos. Com cálculos rigorosos, derrubou várias explicações convencionais, como o uso de novas táticas policiais e o crescimento econômico, e chegou a um fator que não se via nas análise anteriores: a legalização do aborto nos Estados Unidos, em 1973. Levitt argumenta que filhos indesejados de mães solteiras e pobres têm maior risco de enveredar pelo crime – e que milhões desses criminosos em potencial foram abortados de 1973 em diante. Segundo suas estimativas, o impacto do aborto responderia por 40% da queda da criminalidade nos anos 90 (outros fatores importantes incluiriam o aumento do efetivo policial e do número de prisões). A tese foi atacada de todos os lados: os conservadores acusavam Levitt de fazer a propaganda do aborto, e a esquerda o atacou por supostamente propor a esterilização dos pobres. Tudo bobagem. Levitt não é um defensor nem do aborto nem da eugenia. Ele é um cientista que confia no exame empírico, e não em esquemas ideológicos. Seu livro traz esta lição fundamental: o essencial é olhar sempre os fatos."

in Veja, Freaknomics

Ainda assim entendo que não passou o tempo suficiente sobre o referendo realizado. Há que respeitar a decisão da maioria de votantes, sob pena de haver a tentação de retir referendos até acertar no resultado que mais convém.

terça-feira, agosto 02, 2005

os cábulas

Copiando o Abrupto

MICRO-CAUSAS:
PODE O GOVERNO SFF COLOCAR EM LINHA OS ESTUDOS SOBRE O AEROPORTO DA OTA PARA QUE NA SOCIEDADE PORTUGUESA SE VALORIZE MAIS A “BUSCA DE SOLUÇÕES” EM DETRIMENTO DA “ESPECULAÇÃO”?

"Respeito muito os signatários, mas há sociedades que valorizam mais a especulação e a análise, enquanto outras valorizam mais a busca de soluções."
(Manuel Pinho, Diário Económico, 28-07-07)

O despudor continua em desfile. Depois dos estádios do Euro 2004, temos agora o aeroporto da Ota. Sem uma justificação plausível, sem um estudo que caucione a decisão.
Aliás somos um país profundamente cábula... um país que não gosta de estudar, de fazer contas ou de ler.
Somos um país onde os ministros trazem papelinhos escritos para auxiliar a memória. Somos um país de copianços.... se Espanha tem nós também temos que ter.

segunda-feira, agosto 01, 2005

o desejo

"Como uma vasta rede de pesca a abarrotar de sardinhas, o céu arqueava-se em abóbada por cima dos centauros, brilhante de estrelas. Diogo expeliu uma lufada de ar; nele, sempre sinal de que qualquer clique interior o libertava de tensões acumuladas. Desde que primeiro se apercebera da existência, ali na sala, daquelas criaturas, mudara várias vezes de atitude em realção a elas. O terror infantil - face às caras hirsutas, aos troncos musculosos, aos flancos equinos, ás labaredas que jaculavam das tochas - haveria de dar lugar, anos mais tarde, a leve repulsa. Depois, progressivamente, a repulsa foi-se transformando em curiosidade. Agora era escusado negá-lo. Era mesmo fascínio."

Frederico Lourenço, "A Formosa Pintura do Mundo", Livros Cotovia, 2005

Para muitos, Frederico Lourenço não passará de uma nota apensa à tradução da Odisseia e da Íliada. Para outros, bem menos, é o responsável pelo contacto com o mundo grego, com as narrativas fundadoras, com os heróis, com as viagens.
Mas há ainda o Frederico Lourenço original e singular. Há o tradutor do desejo, o navegador dos impulsos do corpo, o poeta de uma Laura contemporânea.
Fredrico é o escritor de vidas solitárias, de amores e desejos impossíveis. "A Formosa Pintura do Mundo" é um conjunto de painéis sobre o encantamento pelo outro. Tal como Petrarca amava a sua Laura inatingível, também os homens e mulheres destes e outros tempos repetem essa devoção sem medida.
Para aqueles que não conheceram o amor, as narrativas de Frederico Lourença não passam de curtas tragédias de gente inconsolável. Para os que foram atingidos na medula da alma, estas são as únicas histórias que contam. Porque Amar Acaba, no exacto momento em que o desejo se cumpre.

"Se amor não é qual é este sentimento?
Mas se é amor, por Deus, que cousa é a tal?
Se boa por que tem ação mortal?
Se má por que é tão doce o seu tormento?

Se eu ardo por querer por que o lamento?
Se sem querer o lamentar que val?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
Tanto podes sem meu consentimento.

E se eu consito sem razão pranteio.
A tão contrário vento em frágil barca,
Eu vou para o alto mar e sem governo.

É tão grave de error, de ciência é parca
Que eu mesmo não sei bem o que eu anseio
E tremo em pleno estio e ardo no inverno."

Petrarca, Rimas